Uma
das práticas quaresmais marcantes é a penitência, sobretudo no comer e no
beber. Tal penitência pode consistir numa simples abstinência, que é renúncia a
algum alimento, ou pode chegar ao jejum, que consiste no privar-se das
refeições de modo total ou parcial. É muito importante a prática de tal forma
de penitência. Aliás, eram o jejum e a abstinência que, na Igreja Antiga, davam
uma fisionomia própria ao tempo quaresmal.
Mas, por que jejuar? Por que se abster de alimentos? É
necessário compreender o sentido profundo que o cristianismo dá a essas
práticas para não ficarmos numa atitude superficial, às vezes até folclórica,
ou por ignorância pura e simples, desprezarmos algo tão belo e precioso no
caminho espiritual do cristão.
O jejum nos ensina que somos radicalmente dependentes de Deus.
Na tradição judaica, na Escritura, a palavranephesh significa, ao mesmo tempo, vida e
garganta. A ideia que isso exprime é que nossa vida não vem de nós mesmos, não
a damos a nós próprios; nós a recebemos continuamente: ela entra pela nossa
garganta com o alimento que comemos, a água que bebemos, o ar que respiramos.
Jamais o homem pode pensar que se basta a si mesmo, que pode se fechar para
Deus. Quando jejuamos, sentimos certa fraqueza e lerdeza, às vezes nos vem
mesmo um pouco de tontura. Isso faz parte da “psicologia do jejum”: recorda-nos
o que somos sem esta vida que vem de fora, que nos é dada por Deus
continuamente.
A prática do jejum impede-nos, então, da ilusão de pensar que a
nossa existência, uma vez recebida, é autônoma, fechada, independente. Nunca
poderemos dizer: “A vida é minha; faço como eu quero”! A vida será, sempre e em
todas as suas etapas, um dom de Deus, um presente gratuito, e nós seremos
sempre dependentes Dele. Esta dependência nos amadurece, nos liberta de nossos
estreitos e mesquinhos horizontes, nos livra da autossuficiência e nos faz
compreender “na carne” nossa própria verdade, recordando-nos que a vida é para
ser vivida em diálogo de amor com Aquele que no-la deu.
O alimento é uma de nossas necessidades básicas, um de nossos instintos
mais fundamentais, juntamente com a sexualidade. A abstenção do alimento nos
exercita na disciplina, fortalecendo nossa força de vontade, aguçando nossa
capacidade de vigilância, dando-nos a capacidade para uma verdadeira
disciplina. Nossa tendência é ir atrás de nossos instintos, de nossas
tendências, de nossa vontade desequilibrada. Aliás, essa é a grande fraqueza e
o grande engano do mundo atual. Dizemos: “não vou me reprimir; não vou me
frustrar”, e vamos nos escravizando aos desejos mais banais e às paixões mais
contrárias ao Evangelho e ao amor pelo próximo.
O próprio Jesus, de modo particular, e a Escritura, de modo
geral, nos exortam à vigilância e à sobriedade. O jejum e a abstinência,
portanto, são um treino para que sejamos senhores de nós mesmos, de nossas
paixões, desejos e vontades. Assim, seremos realmente livres para Cristo, sendo
livres para realizar aquilo que é reto e desejável aos olhos de Deus! Jesus
mesmo afirmou que quem comete pecado é escravo do pecado. É muito importante exercitar-se
com a abstinência. Não basta malhar o corpo; é preciso malhar o coração!
O jejum tem também a função de nos unir a Cristo no seu período
de quarenta dias no deserto. Quaresma de Cristo, quaresma do cristão. Faz-nos,
assim, participantes da paixão do Senhor, completando em nós o que faltou à
cruz de Jesus. O cristão jejua por amor a Cristo e para unir-se a Ele, trazendo
na sua carne as marcas da cruz do Senhor. É uma união com o Senhor que não
envolve somente a alma, com seus sentimentos e afetos, mas também o corpo. É o
homem todo, a pessoa na sua totalidade que se une ao Cristo. Nunca é demais
recordar que a vida cristã atinge o homem em sua totalidade. Pelo jejum, também
o corpo reza, também o corpo luta para colocar-se no âmbito da vida nova de
Cristo Jesus. Também o corpo necessita, como o coração, ser esvaziado do
vinagre dos vícios para ser preenchido pelo mel, que é o Espírito Santo de
Jesus.
Portanto, o jejum e a abstinência fazem-nos recordar aqueles que
passam privações, sobretudo a fome, abrindo-nos para os irmãos necessitados. Há
tantos que, à força, pela gritante injustiça social em nosso País, jejuam e se
abstêm todos os dias, o ano todo! O jejum nos faz sentir um pouco a sua dor,
tão concreta, tão real, tão dolorosa! Por isso mesmo, na tradição mística e
ascética da Igreja, o jejum e a abstinência devem ser acompanhados sempre pela
esmola: aquele alimento do qual me privo já não é mais meu, mas deve ser
destinado ao pobre. Eis o jejum perfeito: ele me abre para Deus e para os
irmãos. Nesse sentido, é enorme a insistência seja da Sagrada Escritura, seja
dos Padres da Igreja (os santos doutores dos primeiros séculos do
cristianismo).
Temos necessidade de ser mais assíduos à prática do jejum e da
abstinência. Resta-nos passar da teoria à prática. Seja nossa Quaresma uma
oportunidade para o jejum e abstinência, engrandecida com o bem da caridade
fraterna, da esmola que se efetiva na atenção e preocupação ativa e concreta
pelos pobres de todas as pobrezas.
Por
Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist. – Arcebispo Metropolitano de São
Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
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